Escrever bem é fingir? E o que a IA tem a ver com isso?
A escrita exige mais do que técnica: exige empatia, imaginação e, talvez, fingimento. Neste artigo, explore o que Fernando Pessoa, a IA e a ciência cognitiva nos revelam sobre o ato de escrever bem.
Sendo da geração Millennial e tendo crescido junto com a tecnologia, acredito que a enxergava de forma mais ingênua. Quando criança imaginava os robôs realizando as tarefas que a maioria das pessoas não gosta: trabalhos domésticos, repetitivos e afins. Porém, a realidade é que a inteligência artificial chegou para substituir justamente os trabalhos intelectuais e artísticos, aqueles que gostaríamos de ter mais tempo para fazer. Pelo visto, as crianças dos anos 1960 estavam mais alinhadas com o futuro! (rsrs) Mas, afinal, o que isso tem a ver com a ideia de que escrever bem é fingir?
Spolier: se você chegar na parte final deste post, entenderá.
Todo povo lusófono já deve ter se deparado com a clássica frase de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor, finge tão bem que parece ser dor, a dor que deveras sente.” É uma das muitas sentenças brilhantes do poeta português que, ao falar da arte de escrever, toca num ponto curioso: a escrita como fingimento.
Mas, afinal, escrever bem é fingir? Isso não soaria como… não natural?
À primeira vista, pode parecer estranho. Fingir não remete à falsidade? Não seria mais autêntico escrever de maneira espontânea, sem artifícios? A resposta, no entanto, é mais complexa, e também mais interessante.
Steven Pinker, psicólogo cognitivo, linguista e professor da Universidade Harvard — apelidado pela Forbes de “psicólogo rockstar” por sua capacidade de popularizar temas densos das ciências cognitivas — oferece uma visão fascinante sobre esse tema em seu livro The Sense of Style. Segundo ele, escrever é, em si, uma atividade cognitivamente antinatural.
Isso porque, do ponto de vista da evolução humana, a escrita é uma ferramenta. Falar é instintivo; escrever, não. Enquanto as crianças aprendem a falar apenas ouvindo, escrever exige esforço, prática, disciplina e um certo “desvio” do que seria natural. Por isso, não é de se estranhar que muitas pessoas tenham dificuldade em escrever com clareza e elegância.
Pinker observa ainda que uma das chaves da boa escrita está em um tipo de fingimento, mas não no sentido negativo da palavra. Ele escreve: “Você deve fingir que você, o escritor, vê algo interessante no mundo e que está direcionando a atenção do seu leitor para essa coisa.” Trata-se de criar um cenário compartilhado de atenção, chamado de “atenção conjunta”.
Esse ato de fingir não é enganar, mas sim simular uma situação de conversa, um gesto de apontar: “Olha isso aqui, leitor, veja como é curioso, belo ou importante.” A escrita, então, torna-se uma ponte em que o autor convida o leitor a atravessá-la, juntos.
E aqui entra um dos aspectos mais humanos e menos mecânicos da escrita: a empatia. Para Pinker, “a boa escrita requer empatia”. Escrever bem é, antes de tudo, imaginar como o outro vai ler. É prever dúvidas, evitar ambiguidades, guiar o olhar do leitor por um caminho claro e interessante. É colocar-se no lugar do outro. Ainda que esse outro seja alguém que o autor talvez nunca conheça.
Assim, o fingimento de que falava Pessoa ganha outra camada de sentido. O poeta finge não porque quer enganar, mas porque quer alcançar o outro. O escritor também. Finge para criar algo que toque, que comunique, que transforme. Escrever bem, nesse contexto, é um gesto de generosidade, não de manipulação.
Portanto, talvez a pergunta devesse ser reformulada: e se escrever bem for, justamente, o mais humano dos fingimentos? Mas, a capacidade humana de compaixão não é um reflexo desencadeado automaticamente pela presença de outro ser vivo.
A empatia é como se fosse uma cebola:
- A camada em que nos colocamos no lugar do outro de forma intelectual. Você pode ser capaz de reconhecer alguém com raiva, mesmo que você não esteja com raiva. Certo? Isso se chama empatia cognitiva.
- A camada em que conseguimos sentir o que o outro está sentindo, por exemplo, nos contaminar com o humor de alguém próximo. Isso se chama empatia emocional.
- A camada em que além de sentirmos e entendermos o outro, também nos prontificamos a ajudá-lo. Essa é a chamada empatia compassiva.
Percebe que algumas pessoas podem ter mais facilidade com algumas camadas do que com outras? Mas a empatia cognitiva está ao alcance de praticamente qualquer pessoa disposta a desenvolvê-la. E aqui entra algo que importa muito para quem escreve: ler é uma atividade que ensina empatia cognitiva.
Ler é uma tecnologia para assumir perspectivas. Quando os pensamentos de outra pessoa estão em sua cabeça, você está observando o mundo do ponto de vista dessa pessoa. E mais do que isso, ler principalmente ficção realista pode expandir o círculo de empatia dos leitores, induzindo-os a pensar e sentir como pessoas muito diferentes de si mesmos.
Não que a fantasia não possa, mas neste campo as emoções são trabalhadas de forma mais alegóricas. Outro ponto é que, em muitos livros contemporâneos, os personagens carecem de personalidade, com a ideia de que o leitor se transporte naquela história como protagonista. Mas não é a identificação do eu que promove a empatia, mas sim, o reconhecimento do outro. Então, esse também é um motivo das escolas manterem os clássicos em suas grades curriculares.
E é justamente aqui que a IA entra em cena, elevando nossa história ao clímax.

Uma ideia que os pesquisadores estão explorando é ensinar nossas máquinas inteligentes sobre empatia, fazendo-as ler nossas grandes obras literárias. Não é isso que nos humanos também fazemos?
Mergulhar na ficção nos permite entrar e compreender melhor o mundo dos outros. Não é possível nos tornarmos mais empáticos apenas lendo tuítes ou textos curtos. Quer um exemplo claro: entre nas redes sociais e perceba como afirmação boba como: “Gosto de morango”, pode virar uma briga sem sentido. Vem um outro e diz: “Quer dizer que você odeia maçãs.” E vem outro e diz: “Qual seu problema com bananas?”
Precisamos nos aprofundar em narrativas mais longas e arcos de personagens para desenvolver nossa capacidade de empatia e absorver essas ideias em nossas mentes. E isso requer tempo, reflexão, uma absorção que não é possível no mundo que divide ou rompe a atenção o tempo todo.
A parte interessante nisso é que vivemos uma espécie de narcisismo da Era Digital, ou seja, o foco está em si e não no outro. E isso não sou só eu falando. Estudos mostram que estamos ficando menos empáticos.
Um exemplo. Segundo Sara Konrah, da Universidade de Michigan, foi encontrado uma queda significativa da empatia após os anos 2000. Os universitários de hoje têm cerca de 40% menos empatia do que seus colegas de 20 a 30 anos atrás, conforme medido por testes padrões desse traço de personalidade nos norte-americanos.
E o mais assustador disso tudo: as IA estão sendo treinadas para desenvolver a empatia cognitiva. Inclusive já tem pessoas que preferem conversar/fazer terapia com elas do que com outros humanos. Alguns estão se apaixonando por elas. Elas estão escrevendo por nós. Escrevendo melhor do que muitos de nós.
Sim, escrever bem é fingir. O ponto do Fernando Pessoa é: Finge tão completamente que chega a sentir que é dor / a dor que deveras sente. Então, a dor também pode ser aprendida de forma cognitiva.
Com certeza, não temos mais como imaginar como será o mundo. Temos o mundo antes da IA. Estamos na era da transição, mas o que será dele quando as IA começarem a aprender com os textos das próprias IA? Já está bem difícil saber o que é ou não escrito por um humano ou por uma IA.
E nós escritores?
Talvez um único caminho de sobrevivência seja aqueles que realmente tem muita empatia.
Dica final: Tenho um conto abordando questões éticas e com provocações filosóficas entre humanos e IA, você pode saber mais clicando aqui. Também escrevo ficção realista, você pode saber mais sobre Amiga insana ou Meu estranho paciente, se quiser mergulhar em personagens pouco representados na literatura.