Literatura com psicologia

Ler O Idiota e me sentir como um

Spoiler: Esse texto é tão fragmentado, frustrante e arrastado quanto a minha experiência lendo O Idiota. A forma segue a sensação.

Comecei a ler O Idiota com a expectativa de ser conduzida, mais uma vez, para dentro da mente humana como em Crime e Castigo, de ser arrastada por Dostoiévski para dentro do que há de mais obscuro e verdadeiro em nós. Mas o que encontrei foi uma narrativa confusa, desfragmentada, sem uma motivação clara de nenhum dos personagens, cenas carregadas de tensão mas desprovidas de direção. Por quase 40% do livro, fui eu quem se sentiu a idiota.

A proposta de simular, por meio da forma, a própria confusão mental do protagonista, o Príncipe Míchkin, é, em certo sentido, brilhante. Um homem bom, de coração puro, lançado em um mundo que opera por códigos que ele desconhece ou recusa conhecer. Seu olhar ingênuo sobre personagens teatrais, manipuladores, movidos por vaidade e desejo, cria uma fricção constante. Há momentos de verdadeira imersão nesse contraste: é como se o leitor, à semelhança de Míchkin, fosse convidado ver tudo por trás de um véu de espanto e incompreensão.

O problema: ao mesmo tempo que o leitor passa a se questionar, surge, também, uma revolta diante da passividade do protagonista. Ao contrário da alcunha, repetida a exaustão por outros personagens, Míchkin está longe de ser lido como alguém desprovido de inteligência. Sua mentalidade brilhante e dissonante é um incômodo para aqueles acostumados com a mediocridade. Aqui entra a oposição entre originalidade e o ordinário. Normalmente, pessoas que fogem do senso comum sofrem algum tipo de estigma. Quer seja porque a massa precisa provar seu ponto ou movidos pelo desejo de manter o status quo.

A originalidade vive à margem.

Entretanto, todo esse brilhantismo é ofuscado ao longo da narrativa. Cheguei a chamar mentalmente Míchkin de quê? De idiota!

Se o leitor não entende os personagens por que se importaria com eles?

Liév Nikoláievitch Míchkin: o protagonista. Encarna o diferente, o puro, o ético em um mundo de máscaras e jogos sociais. Sua pureza constrange. Sua lucidez moral desorganiza. E, como todo elemento deslocado, é rejeitado. Parece que o autor quis criar uma figura arquetípica entre Cristo e Dom Quixote. A referência a Cristo pode ser lida como uma intertextualidade sutil; já a evocação a Dom Quixote é explícita. Mas, em vez do humor, o que se entrega ao leitor é a tragédia.

O que deveria ser uma força (a bondade radical de Míchkin) acaba se tornando decepção. Sua benevolência ultrapassa qualquer limite de convivência possível para alguém com o mínimo de senso social. Ele não apenas não joga o jogo do mundo: ele se recusa a entender que há um jogo.

Anastassya Filippovna Barashkov: Uma mulher fatal, imensamente bela, de vinte e poucos anos, a quem muitos personagens chamam de “louca”. Ama o príncipe, mas se acha indigna dele.

Parfyon Semyonovich Rogozhin: Descendente de uma longa linhagem de comerciantes. Rogójin está perdidamente apaixonado por Nastássia Filippovna. Está óbvio, assim como seu vício em álcool, que essa paixão será sua ruína.

Aglaya Ivanovna Yepanchin: Uma bela jovem de vinte anos, filha mais nova do General Yepanchin e Lizaveta Prokofyevna. Aglaia é arrogante e infantil em seus caprichos, mas também muito romântica e idealista. Ela se apaixona pelo príncipe, mas os ciúmes a dominava.

Gavril Ardalyonovich Ivolgin: extremamente vaidoso e ambicioso. Embora seja o personagem ápice da mediocridade, ele busca a originalidade.

Faço uma pausa: listar todos os personagens seria enfadonho. E aqui vem meu próximo ponto: esses e alguns outros personagens que geravam alguma simpatia ou empatia, no início do livro, são deixados de lado por boa parte da história para que outros apareçam. Com qual propósito? Terminei de ler o livro e não sei responder. O leitor se vê bombardeado por personagens secundários cada vez mais intragáveis, que aparecem para tão logo desaparecerem.

Ah, claro: discursando. Um eterno lenga-lenga. E antes que me venham com o clássico ad hominem (“você não entendeu a profundidade, as reflexões…”), eu vos digo, caro(a) cult: se eu quisesse ler um tratado filosófico, estaria lendo um. Não um romance.

Isso gerou em mim um desinteresse pela narrativa porque sentia mais como Dostoiévski fazendo um ensaio social e político do que lendo uma ficção que me visse pulsar. Parecia que o autor queria que eu o entendesse de forma lógica. Mesmo que essa lógica fosse: seu ponto já foi provado há muito tempo.

Outra coisa incômoda: os personagens eram inconsistentes. Apareciam e desapareciam, surgindo quase como se sofressem de múltiplas personalidades. Li que Dostoiévski escreveu esse folhetim quando precisava de dinheiro e ele ganhava por página escrita. Sinceramente, talvez isso tenha sido o grande problema.

Para mim, se ele tivesse retirado quase metade do livro e se concentrado nos personagens mais importantes, a história teria sido muito melhor. Não teria sido uma leitura tão arrastada. Tão passiva. Teria dado espaço para o leitor conhecer os outros personagens além de uma caricatura.

Eu teria sentido as emoções dos personagens, e não apenas os entendido, sem nem ao menos me importar com eles. Fiquei surpreendida que um livro que aborda um personagem com alexetimia (pessoas que têm dificuldade em identificar e descrever suas emoções) tenha me feito ter mil vezes mais sentimentos durante a leitura.

Não há, com efeito, nada mais aborrecido do que ser, por exemplo, … bastante esperto e mesmo sagaz e todavia não ter talento, nenhuma faculdade especial, nenhuma personalidade mesmo, nenhuma identidade, não sendo propriamente “mais do que como todo mundo”. (…) ter inteligência, mas nenhuma ideia própria. (…)Há uma extraordinária multidão de gente assim no mundo, muito mais até do que a muitos possa parecer. Essa multidão pode, como toda a outra gente, ser dividida em duas classes: os de inteligência limitada e os de alcance mais vasto. Os primeiros são mais felizes.

O próprio personagem principal, em boa parte do livro, é um mero espectador de discursos cheios de ironia e sarcasmo, explicados de forma quase didática ao leitor. E o ponto era: o próprio Míchkin entendia, mas quanto maior era sua compaixão ao deslize humano, mais ele precisava provar-se: te entendo, mas te perdoo, pois ele é todo bondade e benevolência.

Irritante!

A certa altura, já não há mais história. Há apenas o peso de uma mensagem que poderia ter sido dita com muito menos. E, com mais respiro entre um parágrafo ou outro, mesmo que (pasmem!) a maior parte do livro fosse constituído de diálogo.

Percebeu como o meu próprio texto foi denso? Foi proposital, uma pequena amostra de como é ler o livro; acredite ainda trouxe mais ritmo, quebrando as ideias em estruturas menores.

É irônico que, ao tentar dissecar a alma humana, Dostoiévski tenha construído uma obra que parece esquecer a nossa humanidade: essa que cansa, se entedia, se desconecta. Talvez ele quisesse nos testar. Talvez nos quisesse cúmplices, e não leitores. Mas o preço foi alto: em muitos momentos, o fardo foi maior que o fascínio.

Talvez O Idiota seja uma grande obra. Talvez, mesmo assim, seja um livro difícil de amar. Ou talvez Dostoiévski, no fim, só quisesse nos lembrar o que já sabemos: que há algo de insuportável na bondade radical, porque ela nos obriga a olhar de frente para tudo o que não somos.

Recomendação

Se fosse recomendar um livro que aborda como o diferente é colocado de lado, de como a inteligência pode ser nosso maior triunfo e nosso pior fardo, mas com muito mais emoção e muito menos páginas, recomendaria, de olhos fechados, Flores para Algernon. A originalidade e o lado ordinário andam lado a lado, mas preparem os lencinhos, e é justo isso que torna a história mais memorável.