Vida de escritor

Ler é um ato político e sempre será

Sem elitismo, sem fiscalizar gostos literários: A leitura e seus impactos políticos.

A leitura é um ato muito mais profundo do que simplesmente buscar entretenimento (mesmo quando a obra se propõe a apenas isso) e você entenderá o porquê, se continuar.

Não importa se você se perde em um universo de fantasia ou se depara com uma distopia; toda narrativa, mesmo a mais imaginativa, carrega consigo reflexões sobre a realidade humana. A ideia de que a leitura é apenas uma fuga do mundo real é uma ilusão. Por trás de qualquer história, até mesmo as mais fantásticas, existe uma conexão com a experiência humana — personagens com motivações e conflitos que dialogam com questões sociais, individuais e políticas. Cada história, direta ou indiretamente, nos conecta àquilo que conhecemos na realidade concreta.

O que torna um livro “humano” não são apenas os elementos que evocam empatia ou identificação, mas a forma como esses elementos abordam questões universais e sociais. Mesmo em um conto sobre vampiros ou elfos, a trama explora dilemas humanos, desde a busca por poder até questões de moralidade e liberdade. O futuro, seja ele utópico ou distópico, nada mais é do que uma projeção do que já vivemos, uma extrapolação do que conhecemos.

Toda narrativa tem um fundo político, mesmo quando não há intenção do leitor ou do escritor

Romances românticos, por exemplo, não são apenas sobre histórias de amor. Eles refletem e reforçam valores, normas e estruturas de poder dentro da sociedade. A evolução dessas narrativas, como as releituras de contos de fadas que desfazem a idealização do príncipe encantado, é um reflexo de como as relações de poder dentro da sociedade mudam ao longo do tempo.

Atualmente, o mercado literário está repleto de romances eróticos, muitos dos quais surgem em um contexto de maior liberdade sexual e em resposta ao movimento por igualdade entre os gêneros. Curiosamente, apesar das intenções de desafiar normas patriarcais, muitos desses romances (claro que não todos) ainda projetam figuras masculinas de poder, com características ambíguas, como objetos de desejo. Essa contradição reflete a complexidade das ideologias presentes nesses textos, que, ao mesmo tempo, promovem a libertação sexual e mantêm certos estereótipos de poder e submissão.

Ao longo do tempo, quando os valores sociais se revisam, a literatura também se adapta. Assim, a literatura não apenas reflete a sociedade, mas a influencia, moldando as formas como vemos o mundo.

Ler é aprender, e não importa a intenção do autor. Allan Moore que o diga rsrsrs

Ler não é apenas um prazer ou uma fuga, é sempre um aprendizado. Não importa a intenção do autor — cada leitura é uma oportunidade para o leitor aprender, refletir e construir sua própria visão de mundo. O que o leitor vai aprender depende mais de si do que da mensagem explícita do autor. A interpretação está atrelada à vivência e às emoções de cada indivíduo.

A subjetividade é fundamental em qualquer leitura e é o que enriquece a experiência literária. A leitura nos leva a um pensamento crítico, ao conhecimento histórico e social. Por isso, não é à toa que muitos buscam controlar e censurar livros. A literatura pode provocar reflexão e questionamento pessoais e o mundo ao nosso redor, e isso pode ser desafiador para aqueles que detém muito poder sobre a sociedade.

Do conforto ao confrontamento, histórias são expressões simbólicas.

As histórias, em sua essência, funcionam como expressões simbólicas que refletem e moldam as experiências humanas. Elas podem nos transportar do conforto da familiaridade à intensidade do confrontamento com o desconhecido, o incômodo ou o desafiador. Ao longo dos séculos, desde as narrativas orais até os romances contemporâneos, as histórias servem tanto como espelhos da sociedade quanto como ferramentas para questioná-la.

Ao longo dos tempos, as histórias foram usadas para educar, provocar e transformar. Elas podem questionar normas, expor injustiças ou explorar os limites da condição humana, forçando o público a confrontar realidades difíceis, muitas vezes incômodas. Nesse sentido, as narrativas não são apenas um reflexo passivo da realidade, mas também um convite à reflexão e à ação.

Por isso mesmo, ao longo da história muitos livros foram banidos e censurados, pois seu poder de provocar reflexão e confrontar convenções sociais e políticas pode ser considerado uma ameaça.

Quando uma obra literária possui esse potencial disruptivo, ela pode ser vista como perigosa para aqueles que buscam manter o controle sobre o pensamento coletivo. Em muitos casos, os governantes ou instituições tentaram silenciar essas vozes, temendo que suas mensagens pudessem inspirar resistência, mudança ou revolução.

O paradoxo é que, ao tentar silenciá-los, muitas vezes se lhes concede um poder ainda maior, tornando-os símbolos de resistência e liberdade intelectual.

Os livros resistem ao tempo — mas o que acontece quando a capacidade de ler desaparece?

Os livros têm resistido ao teste do tempo. Enquanto a tecnologia avança e muitos formatos se tornam obsoletos, os livros continuam a existir, adaptando-se às novas formas como e-books e audiolivros, mas ainda assim muitos preferem o formato físico.

Pense no quanto de conteúdo em VHS se perdeu durante a transição para o digital. O mesmo não aconteceu com os conteúdos em papel.

Livros podem ser preservados, mesmo diante de incêndios, enchentes ou qualquer outro desastre natural, desde que haja cópias em outro lugar. Mas, e quando as pessoas perdem a capacidade de ler? Vivemos uma era em que isso está se tornando uma realidade? Quem se beneficia de uma população analfabeta ou sem capacidade crítica?

O acesso à leitura não é igual para todos. Políticas públicas que garantam bibliotecas, livros a preços acessíveis e educação de qualidade são fundamentais para democratizar o conhecimento. Quando há barreiras ao acesso à leitura, há também um mecanismo de exclusão social que perpetua desigualdades sociais.

Reflita sobre o que você lê.

Comece a pensar nos livros mais lidos do mundo. Quais dominam as listas de mais vendidos? Quantos desses você já leu e percebeu que eram falhos — não por serem subjetivamente ruins, mas porque suas tramas e enredos apresentam pontas soltas? Até mesmo o seu gosto literário está, muitas vezes, condicionado por uma mão invisível — o controle dos grupos políticos e sociais que detêm o poder de difundir ideias.

Ideias são o ativo mais valioso de uma sociedade, pois com elas se fazem revoluções ou se criam ditaduras. Ao decidir ler ou não, gostar ou não, ter acesso ou não a uma obra, você está assumindo um posicionamento dentro da sociedade ou apenas refletindo um lugar dentro da sociedade que lhe foi imposto.

E a conclusão mais intrigante dessa história toda…

Os escritores mais visionários, aqueles que desafiam o status quo, muitas vezes não são reconhecidos em sua própria época. No entanto, são esses mesmos escritores que, ao questionar normas sociais e políticas, acabam moldando o futuro. Pensar criticamente sobre o que lemos é uma forma de questionar e, quem sabe, transformar o mundo.

Há muitas obras para serem lidas, desde as mais clichês às mais disruptivas.

Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo
– Voltaire

E embora este texto não tenha a intenção de ser preconceituoso, mas sim um convite à reflexão e críticas sociais, é muito possível que alguns o entendam de outra forma. E essa é a mágica da literatura e da leitura.