Literatura com psicologia

A Revolução dos Bichos: entre o totalitarismo e a psicologia das seitas

A história é tão simples quanto possível, mas a lição que ela traz é complexa e inquietante.

Numa bela noite de verão, o fazendeiro Sr. Jones é deposto, e os animais tomam conta de sua fazenda. Os porcos são os animais mais inteligentes. Qualquer coisa dita a mais será spoiler. E esse é o maior desafio aqui: escrever uma análise contando ou não a história?

Recomendo ler esse post depois de ter lido ou caso não se importe em conhecer a história antes de ler.

Logo no início, os animais criam um hino revolucionário, cheio de esperança. Mas essa canção, como tudo na história, será pervertida. Eis um trecho que marca esse momento de fé coletiva:

Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!
Eis a mensagem de esperança,
No futuro que virá!
Cedo ou tarde virá o dia,
Cairá a tirania
E os campos todos da Inglaterra
Só aos bichos caberão!
Não mais argolas em nossas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freios e esporas, descartados,
Chicotadas abolidas!
Muito mais ricos do que sonhamos
Possuiremos daí por diante
O trigo, o feno, e a cevada,
Pasto aveia e feijão!
Brilham os campos da Inglaterra,
Águas puras rolarão.
Ventos leves soprarão
Saudando a redenção!
Lutemos todos por esse dia
Mesmo que nos custe a vida!
Cavalos, vacas, perus e gansos,
Liberdade conquistemos!
Bichos ingleses e irlandeses,
Bichos de todas as partes!No futuro que virá!

Sinopse

O conflito central de A Revolução dos Bichos surge quando o desejo dos animais por liberdade e igualdade é corrompido pela consolidação do poder político entre os porcos. Os animais vencem facilmente quando se rebelam contra o Sr. Jones e, como resultado, cometem o erro de pensar que superaram o poder político. Na realidade, superaram apenas uma de suas formas. Eles não percebem isso até o último capítulo.

Os porcos, Napoleão em particular, passam a incorporar o poder político de três maneiras:

  1. Reivindicam cada vez mais os recursos da fazenda para si.
  2. Tornam-se mais violentos, introduzindo a força policial canina e ordenando execuções.
  3. Reivindicam o poder de determinar a verdade.

TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS, MAS ALGUNS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS!

Análise política e social

Sim, todo mundo diz que George Orwell escreveu A Revolução dos Bichos, em 1945, baseado na Revolução Russa, Stalin e a ascensão do comunismo. Mas, para mim, trata-se da podridão humana ao encontrar o poder.

Há muitas semelhanças entre os humanos e os porcos desta história, e, por isso mesmo, foi uma leitura desconfortável, que me causou raiva, embora eu continuasse lendo.

Para mim, não é sobre comunismo, pois o capitalismo também se manifesta, inclusive no descarte: “você só é útil enquanto produz; tão substituível quanto um prego torto”. É sobre o totalitarismo, com toda sua crueza, desigualdade e manipulação (de dados, de afetos, de estatísticas).

Resumindo, poderia acontecer em qualquer lugar. Ops, já aconteceu tantas vezes mesmo? Nem sei, já perdi as contas.

Entra aqui também a distorção da verdade: seja através de discursos convincentes, seja pelo domínio da leitura e da escrita, que permite o controle das informações.

Há uma crítica forte ao analfabetismo, inclusive o funcional: mesmo alguns sendo capazes de ler, ainda assim se deixavam guiar por interpretações alheias, e não pelas suas próprias.

A reivindicação da verdade vem em uma forma que conhecemos bem hoje: através da propaganda e do marketing; da promessa política que não se cumpre, mas se distorce em números e dados manipuláveis; da falta de pensamento crítico da massa.

E se a ideia é: comecem a pensar por si próprios, mais um desconforto surge: o único sábio da história, o burro Benjamim, optou o tempo todo pelo silêncio, pela omissão… QUE RAIVA! Ou seja, perpetuou a injustiça, impedindo que os outros animais tivessem sequer a chance de uma segunda revolução ( que, a meu ver, tornou-se impossível).

Quando os animais percebem que estão escravizados pelos porcos, o poder já está consolidado e conta, inclusive, com o apoio dos humanos.

Minha crítica: o silêncio dos sábios ou dos céticos (como preferirem) pode até ser uma estratégia de sobrevivência em um regime totalitário, mas também é uma forma de sustentá-lo.

Análise psicológica

Agora vem o ponto que eu acho que poucos falam dessa alegoria. Muitos se concentram no aspecto político e social da novela, mas poucos falam sobre o aspecto psicológico, que ao meu ver, foi fundamental na construção do poder dos porcos: o esquema de construção de seita.

Todas as seitas têm algo em comum: a capacidade de atrair seguidores e, posteriormente, tornar difícil a saída dessas pessoas.

O que é uma seita?

É um grupo de pessoas que compartilham alguma crença incomum (que foge do pensamento corrente de uma sociedade), e acabam se isolando do mundo, fechando-se em uma estrutura autoritária de poder. Embora comum em contextos religiosos, pode ocorrer em qualquer outro, inclusive no ambiente de trabalho.

Por que os animais compuseram uma seita?

Seitas costumam pregar o culto a um deus ou um líder. Existem 3 características principais das seitas e elas aparecem claramente na construção da narrativa:

  1. Um líder carismático
  2. Isolamento da “cultura maligna” circundante
  3. Rituais e crenças distintivas ao cultuar um deus ou um líder

Um líder carismático

Após a expulsão de Jones, os porcos assumem a liderança. Especialmente Napoleão e Bola-de-Neve, que passam a dar ordens aos outros animais. Estes, por sua vez, as seguiam e aprovavam, mesmo sem entendê-las. Essa é uma das marcas do culto: líderes são vistos como seres superiores, que sabem mais.

Mas a seita se fortalece quando há uma única voz guiando, seja ela divina ou ideológica. O conflito entre Napoleão e Bola-de-Neve, que apresentava diferentes perspectivas, impedia a formação da seita. Isso muda com o golpe de Napoleão.

Com a liderança unificada, os animais perdem o debate, o espaço para discordar. E essa única voz se torna poderosa, pois não há mais questionamento, só obediência.

O cavalo Boxer, o mais forte e trabalhador da fazenda, adota para si o lema:

Napoleão está sempre certo.

De repente, Napoleão se tornou o guardião de toda a verdade dos animais.

Isolamento da cultura maligna

Os humanos são vistos como figuras malignas. Tudo o que está associado a eles, inclusive luxos como dormir em camas, é inicialmente repudiado pelos animais. No entanto, isso muda à medida que os porcos assumem plenamente o poder. A mudança ocorre porque os animais interpretaram mal os mandamentos do Animalismo e não perceberam as exceções. Ainda assim, os verdadeiros vilões, no início da história, são os humanos cruéis que chicoteavam e exploravam os animais.

A gente sabe que quatro patas bom, duas ruim.

Os rituais

Havia rituais na fazenda: cantar o hino “Bichos da Inglaterra”, seguir os mandamentos do Animalismo. Aos poucos, até esses símbolos assumem novas formas. No fim, os rituais tornam-se apenas um culto ao deus Napoleão.

Conclusão

É justamente esse aspecto psicológico que, a meu ver, permitiu aos animais manterem uma percepção ilusória e equivocada sobre sua realidade. Mesmo que seus instintos indicassem que havia algo errado, a estrutura coercitiva de poder, combinada com o envolvimento emocional típico das seitas, os impediu de reagir.