A mais simples colegial, quando se apaixona, tem Shakespeare para falar por ela. Mas deixe um sofredor tentar descrever uma dor de cabeça para seu médico e a linguagem imediatamente se esgota. Virginia Woolf
Segundo Woolf, quando a dor entra, as palavras fogem. Seria verdade?
A dor é uma experiência universal. Já foi vista como castigo divino, punição moral, desequilíbrio dos humores. Hoje, sabemos que ela é complexa, multifatorial, e ainda assim, segue cercada de mistério.
Um mistério que todos conhecem. Quem nunca sentiu dor física ou emocional? Mas o que ela é, afinal? Uma sensação? Uma emoção? A pergunta é quase circular, como o dilema do ovo e da galinha.
Na prática, quem já correu para o hospital sabe: duas perguntas diretas nos esperam — “Onde dói?” e “De 1 a 10, qual a intensidade?”. E então vem a tarefa impossível: traduzir uma experiência íntima, muitas vezes avassaladora, em palavras simples. Dito de outra forma, a dor é subjetiva: só existe para quem a sente.
Eu não tinha percebido que o fato de acreditar que estava com dor não era razão suficiente para ser confiável.
(Eula Biss, escritora)
Talvez por isso, para tentar nomeá-la, recorremos quase sempre às metáforas: “É uma pontada”, “é como uma facada”, “parece uma queimadura”. A linguagem tropeça, e precisamos de imagens, gestos, comparações; qualquer recurso que ajude a empurrar para fora o que insiste em ficar dentro.
Na literatura, o desafio é semelhante. A dor raramente se mostra de forma direta. Ela se insinua nos silêncios, nas pausas da sintaxe, nas metáforas. Às vezes, aparece disfarçada, como quando chamamos alguém de “um pé no saco”. É que a dor acontece antes da linguagem. Ela explode em nós, bruta, sem forma, antes mesmo de podermos nomeá-la.
Já parou para pensar se escrevemos melhor quando felizes ou triste? Eu falo sobre isso aqui.
E esse é o desafio de quem escreve ficção: falar de dor é mais do que relatar sintomas; é falar sobre o indivíduo. A literatura está cheia de histórias de amor, de dor por amor. Mas a dor em si, desprovida de romance ou redenção, aparece menos. A dor pura é rara.
E eu gosto muito de falar sobre a dor mais primitiva. Meus dois primeiros livros tocam profundamente neste tema, e você vai entender melhor os motivos se continuar lendo.
A filosofia reconhece: descrever a dor é, em parte, tentar localizar o eu. Quem sente, sente em si, no centro do ser. A dor é egocêntrica. Nos arrasta para dentro. A psicologia entende que nomeá-la é o primeiro passo para tratá-la. Mas mesmo na clínica, a linguagem é tentativa. Um esboço. Um esforço de tradução.
Na ficção, essa tensão entre dor e palavra é o que o escritor busca para explorar o tema. Como disse Nietzsche:
Aquilo que não me mata, me fortalece.
Mas até Nietzsche chorou.
Nós, humanos, temos a tendência de encarar a própria dor como um fardo. Mesmo que a cura não signifique ausência de dor.
A questão é que, quando vemos nossa própria ferida como um fardo, ficamos obcecados em “consertá-la”. Ficamos envergonhados dela. Então, para manter nossa dor em segredo, não nos permitimos nos conectar com nossa vulnerabilidade.
Tentamos provar a nós mesmos e aos outros que estamos consertados, inteiros e perfeitos, porque é isso que o mundo espera que a gente projete na sociedade.
E aqui, a ficção entra de forma magistral. Nossos ancestrais escreviam histórias por um motivo. Histórias nos ajudam a falar sobre as lições mais difíceis de aprender. E quando falamos de dor, automaticamente falamos também de cura.
A mitologia já nos mostrou isso há séculos.
A figura mitológica de Quíron (o centauro ferido que se tornou mestre da cura) nos lembra que reconhecer nossas feridas não é fraqueza. É força. A ficção nos oferece esse presente: nos permite enfrentar o sofrimento, explorar o mistério. E tudo isso com a vantagem de ser indolor.
A dor vem de nós e demora. A ficção vem dos outros e vai embora. Dor é escolha, poesia. Ficção é um livro, prosa. Sim, parafraseio Rita Lee, porque a arte, no fim, é o nosso melhor tradutor.
Spoiler final: se você quiser se aprofundar mais neste tema, sugiro meus livros. Você pode saber mais sobre Meu estranho pacientee Amiga insana [clicando].
E se você quiser me acompanhar por aqui, no próximo post do blog trago um novo questionamento: escrever é fingir bem?