Literatura com psicologia,  Vida de escritor

Literatura como Espaço de Desejo: Entre o Leitor e o Livro

Outro dia, esbarrei com essa ideia circulando pelas redes: “Sentir sono ao lado de alguém é sinal de amor.”

A frase me pegou de jeito — não tanto pela curiosidade científica, mas pelo que ela sugere: que há segurança, intimidade e entrega quando o corpo relaxa ao lado de alguém.

E se esse alguém não for uma pessoa, mas um livro? Ou um personagem? Ou uma história?

Foi com isso na cabeça que criei a tirinha (usei IA, já que o desenho não é meu forte, e meu blog não tem fins comerciais). Nela, o sono não surge só como sinal de amor, mas talvez como entrada num mundo de fantasia.

Vejam só a sincronicidade: esse pensamento surgiu depois de eu ter mergulhado no tema Por que fazemos o que fazemos, do Mário Sérgio Cortella e ter continuado com o vídeo de Clarice Lispector. E, pouco depois, encontrei (ou fui encontrado por) o ensaio de Freud O escritor e a fantasia (1908). Mas voltando…

No seu ensaio, O escritor e a fantasia, Freud propõe que o escritor de ficção, no fundo, continua aquilo que fazia quando criança: fantasiar, brincar, transformar desejos em mundos possíveis. Só que, na vida adulta, fantasiar vira algo disfarçado — e escrever (ou ler) é um dos jeitos mais elegantes de fazer isso.

A tirinha brinca com isso. O personagem ama tanto o livro… Ou será que o livro não segurou o interesse?

O escritor ama tanto que faz que adormece escrevendo. Ou será que o cansaço venceu, mesmo com a mente ainda presa à história?

(Só Freud pra explicar esse relacionamento, né?)

Fantasiar: entre o permitido e o inconfessável

Para Freud, as fantasia, tanto infantis quanto adultas, funcionam como formas de satisfazer desejos que não encontraram realização na realidade. No entanto, enquanto as fantasias das crianças são aceitas socialmente como parte do jogo e do desenvolvimento, as dos adultos tornam-se, muitas vezes, inconfessáveis. Daí a importância do processo criativo: ele permite transformar o desejo privado em expressão pública.

E neste mesmo ensaio, Freud propõe dois tipos fundamentais de escritores:

O sonhador diurno

Esse tipo de escritor cria a partir de suas próprias fantasias. As histórias que produz carregam ecos de desejos reprimidos que ressoam no inconsciente dos leitores. O prazer estético, nesse caso, advém da habilidade do escritor em transformar suas fantasias pessoais (que poderiam causar vergonha se expostas diretamente) em algo que encanta, comove e atrai o público, fazendo o participar da leitura sem se sentir culpado.

A meu ver, essas obras costumam ter um caráter mais onírico, simbólico, subjetivo ou mesmo surrealista. Atendo-se aos clássicos eu citaria: Franz Kafka, Virginia Woolf, Clarice Lispector.

O observador (confesso que me identifico com esse, rsrs)

Esse escritor não parte diretamente de suas próprias fantasias, mas tem uma sensibilidade apurada para perceber a vida psíquica dos outros. São os chamados escritores “psicológicos”, que descrevem com precisão conflitos, motivações e desejos alheios. Ainda assim, mesmo essa observação está segundo Freud, em última instância, ligada ao inconsciente do autor — afinal, toda escolha de tema ou personagem revela algo de quem escreve.

Aqui temos uma ênfase maior sobre a habilidade empática do escritor, eu colocaria nesta categoria: Machado de Assis, Fiódor Dostoiévski, Jane Austen.

Poderíamos inclusive expandir esse conceito de Freud, e colocar que há escritores que estão no meio entre os dois tipos, como a obra da A Revolução dos Bichos, de George Orwell.

Em síntese

Freud sugere que, seja como sonhador ou como observador, o escritor trabalha sempre com o material da fantasia — seja ela própria, seja projetada dos outros. E essas fantasias costumam ter duas fontes principais: o desejo erótico ou desejos ambiciosos (de poder, sucesso ou glória).

A criação literária, nesse contexto, torna-se um espaço de negociação: um compromisso entre os impulsos inconscientes e as exigências da realidade. Por meio da arte, o escritor disfarça desejos proibidos em formas simbólicas compartilhando com o leitor aquilo que, de outra forma, talvez fosse impossível dizer.

Expandindo esse conceito, resolvi brincar (devanear) sobre outros modos, a meu ver leigo, entre a fantasia e o autor. Já adianto que falo como uma escritora que gosta de psicologia, sem intenção de ser uma especialista.

E o que Jung diria disso tudo?

Enquanto Freud vê a fantasia como expressão de desejos reprimidos do inconsciente individual, Jung amplia esse conceito e propõe que muitas imagens criativas vêm do inconsciente coletivo — uma camada psíquica compartilhada por todos os seres humanos, povoada por arquétipos (figuras universais como o Herói, a Sombra, a Mãe, o Velho Sábio).

Escritores modernos trabalham, muitas vezes, de forma consciente com vários conceitos introduzidos da psicologia Jungiana e seus derivativos, como construir personagens calcados em arquétipos ou usando estruturas narrativas míticas, como a Jornada do herói.

E aqui reside um problema atual: esses conceitos já deixaram de ser (há muito tempo) modelo simbólico vivo e se tornou um molde comercial.

A jornada do herói, p.ex, virou uma caixa de pizza vazia: entrega um formato, mas muitas vezes sem recheio simbólico. E, como leitora, é algo que me incomoda, me fazendo dormir sobre o livro (de tédio) ou mesmo abandonar a leitura. Mas, inegavelmente, continuam sim angariando leitores, em especial, aqueles que buscam previsibilidade da obra.

Em termos modernos, a fantasia não é mais necessariamente o material simbólico de um escritor, embora, muitos críticos ainda insistam em análises assim, não dissociando o autor da obra, sendo que as obras há algum tempo são, muitas vezes, fórmulas prontas.

Ao pensar sobre o leitor que adormece lendo o livro, ou do escritor que adormece sem se desligar da história que está escrevendo, me ocorreu uma outra leitura junguiana: e se o sono não fosse apenas sinal de amor, mas um convite à travessia de um portal simbólico?

Será que Jung diria que ao mergulhar num livro (ou adormecer ao lado de alguém) acessamos não só o nosso inconsciente individual, mas tocamos o inconsciente coletivo?

O livro, nesse caso, seria o “velho sábio” ou o “guardião da alma”, guiando personagem e leitor numa jornada simbólica: quando, de fato, há esse material simbólico.

Entre o leitor e o livro, talvez exista mais do que leitura: existe um espaço de desejo, onde fantasia e realidade adormecem lado a lado, seja de amor ou de tédio.