Propósito, Arte e Escrita – Parte 2: Entre a Liberdade e o Compromisso
Para Clarice Lispector, a motivação para escrever é a liberdade — ou seja, a possibilidade de não fazer quando não se quer. Por isso, ela não se declara uma escritora profissional. No momento em que se assume uma obrigação (consigo mesma ou com os outros), perde-se a liberdade.
Sentir-se preso, de fato, pode levar à desmotivação, dependendo do propósito de quem cria.
No entanto, essa visão de Clarice entra em conflito com um pensamento de Mario Sergio Cortella: “As pessoas procrastinam porque não querem o sonho, querem o delírio.” Ou seja, para ele, muitas vezes falta disciplina para transformar o sonho em realidade.
Liberdade criativa x rotina criativa
O que Clarice propõe (nas entrelinhas) é a libertação do artista: criar sem se prender a rotinas. Para ela, a rotina pode significar monotonia — a obrigação de fazer — e, com isso, o surgimento de um automatismo que compromete o potencial criativo.
Curiosamente, Cortella também afirma que a monotonia, resultado do automatismo, é uma das principais causas da perda de motivação.
A diferença é que, para ele, a rotina não é sinônimo de monotonia. Pelo contrário: pode ser um alicerce (até prazeroso) no caminho para alcançar um propósito. Afinal, não é possível ter uma casa pronta para morar se o processo de construção não for realizado, certo?
A rotina é parte do processo de quem almeja um resultado.
Dois olhares sobre o processo criativo
Temos aqui dois olhares distintos (e complementares) sobre o processo criativo:
- Para Clarice, o compromisso excessivo pode matar a própria chama criativa.
- Para Cortella, é preciso método, constância e esforço para que a inspiração se concretize.
Ser relevante ou ser livre?
Em tempos de redes sociais, muitos autores se veem pressionados a publicar com frequência para manter a relevância. Certamente, há perdas nesse processo — de tempo, de autenticidade, de liberdade.
Até que ponto um artista consegue ser relevante hoje sem se submeter ao ritmo imposto pelas expectativas externas?
E quando a escrita é só um hobby?
Por outro lado, há quem escreva por hobby e publique por impulso.
E aí surge uma pergunta incômoda: Por que alguém dedicaria tempo e dinheiro para ler algo que, para o próprio autor, é apenas um passatempo?
A banalização da escrita?
Com a chegada da inteligência artificial e a popularização da autopublicação, essa discussão se intensifica: Se qualquer um pode escrever um livro, onde está o valor da obra?
Falo como alguém que autopublica e defende a autopublicação — mas reconheço os questionamentos. Até mesmo a Amazon passou a limitar o número de publicações diárias por autor (três por dia), numa tentativa de conter a enxurrada de livros gerados inteiramente por IA.
E isso acontece num país onde, convenhamos, a arte nunca foi um terreno extremamente lucrativo.
A arte não é passatempo para o artista, é coisa séria
Importante dizer: Clarice não reduz a arte a um passatempo. Para ela, o ato criativo deve ser livre de imposições, especialmente quanto ao “quando” se criar.
Ela leva a arte a sério, justamente por não querer que ela vire obrigações vazias.
Conclusão: resistir ou persistir?
Talvez a provocação mais valiosa que Clarice nos oferece seja esta:
👉 Nosso diferencial pode estar justamente em recusar certos moldes. Mesmo que isso signifique nadar contra a corrente.
No fim das contas, Clarice e Cortella não se anulam — se completam.
- Clarice nos convida à introspecção e à liberdade interior.
- Cortella nos alerta que, sem disciplina, o sonho vira apenas devaneio.
Talvez a chave esteja em saber quando resistir — e quando persistir.
E, acima de tudo, ser fiel ao seu propósito.