Literatura com psicologia,  Saúde Mental,  Vida de escritor

Kafka e a Carta ao Pai: Uma leitura íntima sobre a dor de ser Filho

“Não vou dizer, é claro, que me tornei o que sou apenas como resultado de sua influência. Isso seria muito exagerado (e de fato estou inclinado a esse exagero)”.

“Para mim, você assumiu a qualidade enigmática de todos os tiranos, cujos direitos se baseiam em sua pessoa e não na razão.”

“(…) mas nem toda criança tem a resistência e o destemor para continuar buscando até encontrar a bondade que jaz sob a superfície.”

“Tornava-me uma criança taciturna, desatenta e desobediente, sempre com a intenção de escapar, principalmente de dentro de si mesma.”

“Entre nós não houve uma luta real; logo fui liquidado; o que restou foi fuga, amargura, melancolia e luta interior.”

Antes de começar esta análise, imagine comigo: de um lado, um pai totalmente voltado à lógica e à realização: um homem de pés no chão. Do outro, uma criança sensível, emotiva, sonhadora (e que viria a se tornar um dos maiores escritores do século XX). Percebe o abismo entre o que um pode oferecer e o que o outro precisa receber?

Esse abismo (intransponível, doloroso e silencioso) foi escrito por Kafka em uma carta de quase cem páginas.

Caro Kafka,

Não o julgo culpado por ter escrito uma carta tão dura ao seu pai e ele nunca a tenha lido, pois sua mãe impediu que a carta chegasse ao destinatário, com medo de um resultado óbvio e catastrófico. Mas, controversamente, tantas pessoas a posteriori (incluindo eu) a tenham lido.


Não me culpo por ter lido algo tão íntimo que, ao meu ver, nunca deveria vir a se tornar público. E, mesmo assim, o li (inclusive em público). Não te culpo, e nem me culpo, por você ter me feito chorar em público, sem conter as lágrimas, mesmo sabendo que todos me veriam lendo.


Há tantos Kafkas pelo mundo e pelo tempo que não me é estranho que alguém tenha considerado sua vida mais íntima como material universal. Não necessariamente todos tiveram um pai como o seu, mas podem ter tido, sim, alguma figura de autoridade na infância com a silhueta do seu.

E, embora sua tentativa recorrente e consciente de tentar absolver seu pai e a si nesta carta (inclusive com todas as palavras), não me resta dúvida de que, sim, você o culpava — e culpava a si.


Culpava por como ele te fazia sentir: pequeno, medroso ao ponto de se introverter em um mundo à parte, como refúgio e não como personalidade (mesmo que, com o tempo, isso tenha passado a ser tão parte de si que nem mesmo poderia se ver de outra forma). Mas, principalmente, pelo sentimento mais duro de todos, ao meu ver: INSUFICIENTE.


Não importava o esforço: você nunca seria suficiente. E, por isso, ao mesmo tempo, chegou um momento em que já não havia mais esforço algum em outra direção. Era o fim. Você se aceitou como aquele menino insuficiente. Mas que, ao crescer, oscilava entre tentar agradá-lo (se diminuindo ainda mais para caber na expectativa dele — e, por isso mesmo, sentindo-se ainda pior) ou o desafiando, mais ou menos abertamente.


A despeito das falhas paternas — pintadas como alguém tirânico com os filhos, mas amável e respeitoso como marido; um comerciante nato e habilidoso, mas um patrão ultrajante; um pai severo, mas um avô babão; um hipócrita do tipo “faça o que eu falo, não o que eu faço” — você nos pinta um homem aprendendo a ser pai, inclusive depois da perda de outros filhos, e que falha miseravelmente sob o ponto de vista do filho.


Como espectadora, acredito que deveríamos convergir: não há culpados e, mesmo assim, há culpa. E a culpa é tão imensa que você precisa absolvê-lo para se ver absolvido. Mas isso falha, porque sua criança ferida nunca foi, de fato, curada.


E talvez, sim, se você tivesse se tornado marido (em vez de encontrar formas conscientes e inconscientes de se culpar — inclusive ao seu pai— pelas tentativas frustradas, por suas autossabotagens), se tivesse se tornado o pai que não teve, talvez assim deixasse de se culpar e de culpar seu pai.


Devo dizer que você tem talento para psicólogo. E, como tal, tenta curar o mundo e não a si.


Mesmo nunca tendo me interessado em ler nada seu e tendo começado logo por sua autobiografia, me declaro culpada por querer saber quais eram as marcas do escritor ferido que se tornou um dos grandes nomes da literatura mundial.


Como escritora, acho que cada escritor (de fato, realmente importante — algo que hoje não sou) tem uma grande dor consigo, que o leva a escrever. E, se sua motivação era a culpa de ter falhado como filho, o que levou à falha como homem, e mesmo não tendo visto sua glória como escritor em vida, você se libertou — e libertou gerações — com algo que aprendeu, desde muito pequeno, a engolir: suas palavras.


Vejam só: será que seria assim, se não tivesse sido assim, se não tivesse tido o pai que teve?

Sei que você é muito bom em lógica e entendeu minha dupla negação proposital. E, mesmo que nunca me respondesse, sei que daria um sorrisinho de lado.

Josiani